Mas essa história está
prestes a dar uma virada dramática. A ciência finalmente descobriu como
dar o último passo: arrancar o HIV dos lugares onde ele se esconde no
corpo humano. No último ano, vários grupos de pesquisadores comprovaram
que é possível expulsar o HIV de seus esconderijos e jogá-lo de volta na
corrente sanguínea - de onde ele poderia ser eliminado, livrando
completamente o organismo do vírus. Ou seja, cura. Os pesquisadores
mantêm cautela, mas a possibilidade tem gerado euforia em setores da
comunidade científica. Parece que, depois de passar as últimas décadas
tomando dribles do vírus, a humanidade finalmente pode ter descoberto
uma forma de encurralá-lo. "Há dois anos, se alguém falasse em cura,
seria considerado maluco. Isso era considerado impossível", diz John
Frater, imunologista da Universidade de Oxford e um dos líderes do
Cherub (Collaborative HIV Eradication of Viral Reservoirs), projeto que
reúne cinco universidades inglesas num estudo contra o vírus. "Estou
genuinamente entusiasmado", afirma.
A técnica de expulsão do
HIV é a inovação científica mais importante, e instigante, das últimas
décadas. Mas não é a única novidade na luta contra o vírus. Há pessoas
que, por meio de outros procedimentos médicos, foram curadas da Aids. Em
alguns casos, elas desenvolveram resistência ao HIV; em outros, o vírus
desapareceu do organismo. Você vai conhecer essas histórias a seguir.
ONDE O VÍRUS SE ESCONDE
Como o HIV é muito
pequeno, penetra facilmente nas mucosas genitais durante o sexo, e delas
vai para a corrente sanguínea, onde encontra sua vítima: as células T,
peças centrais do sistema imunológico. O vírus penetra nessas células e
as escraviza, transformando-as em máquinas de produzir HIV. É um
processo diabolicamente eficiente, que gera 100 bilhões de novas cópias
do vírus por dia. No começo, a pessoa não sente nada, no máximo febre e
um mal-estar discreto. Mas as células T vão morrendo até que, após
alguns anos, o sistema imunológico fica comprometido - e a Aids se
instala.
Existem dois tipos de
células T: as ativas e as inativas. É como no exército. Alguns soldados
estão de prontidão nos quartéis e outros vivem na reserva, podendo ser
convocados em caso de emergência. O HIV infecta tanto as células ativas
quanto as inativas. O problema é que os medicamentos antirretrovirais só
agem nas células ativas. Nas células inativas, que vivem numa espécie
de hibernação, o remédio não faz efeito. Isso porque essas células não
contêm um montão de HIV dentro. Na verdade, é algo mais assustador
ainda.
Elas têm o vírus HIV
copiado dentro do próprio código genético. Isso significa que, conforme
vão sendo ativadas pelo organismo (um processo natural, que acontece ao
longo da vida de todo mundo), começam a se reproduzir - e fabricar
enormes quantidades do vírus. É por isso que os medicamentos
antirretrovirais não curam a Aids. As células T inativas funcionam como
um enorme reservatório de vírus. Ele até vai sendo esvaziado aos poucos,
na medida em que as células inativas vão sendo repostas pelo organismo e
o vírus vai sendo eliminado pelos medicamentos, mas isso leva uma
eternidade: segundo estimativas, pelo menos 60 anos. Ou seja, o portador
de HIV tem mesmo de passar a vida toda tomando antirretrovirais (que
provocam efeitos colaterais como hipertensão, diabetes e danos aos rins,
fígado e ossos).
A menos que exista uma forma de esvaziar à força os reservatórios de HIV.
Essa possibilidade
começou a se desenhar em outubro de 2006, quando o governo americano
autorizou a venda de um novo medicamento, chamado vorinostat. Esse
remédio foi criado para tratar o linfoma cutâneo de células T, um câncer
no sistema imunológico. Esse câncer se manifesta na forma de lesões na
pele, mas se origina no sangue. Ele é tratado com quimioterapia. Mas a
quimioterapia só funciona bem com tumores que se multiplicam bastante
(porque ela age na reprodução celular). E o linfoma cutâneo não é assim.
Por algum motivo, ele faz o corpo aumentar a produção de histona
deacetilase (HDAC), um tipo de enzima que faz as células pararem de se
reproduzir. E isso reduz o efeito da quimioterapia. O vorinostat
bloqueia a ação dessa enzima, colocando o câncer de novo em estado de
multiplicação - e vulnerável à quimiotepia. Atiçar o câncer é uma
estratégia arriscada. Por isso, o vorinostat só é usado em casos graves,
nos quais dá resultado (70% dos pacientes respondem a ele).
A infecção - e o caminho da cura
O segredo está em acordar células dormentes, onde o HIV fica escondido
1. Contaminação
O HIV entra no
organismo. Ele se instala nas células T, que são responsáveis por
coordenar a ação do sistema imunológico. Há dois tipos de célula T:
ativa e inativa. O vírus invade ambos os tipos.
2. Invasão do DNA
O HIV entra na célula e
se infiltra no núcleo dela, onde está o DNA. As células ativas se
multiplicam - e, com isso, multiplicam o HIV.
As células inativas não se multiplicam. Graças à ação de uma enzima, elas ficam dormentes (e o vírus também).
3. O tratamento tradicional
Os medicamentos
antiretrovirais, usados hoje, conseguem bloquear a progressão do HIV - e
controlar a Aids. Mas não agem nas células inativas, onde o vírus fica
escondido. Se a pessoa parar de tomar os antirretrovirais, o HIV
"escondido" acorda. E a Aids volta.
4. A nova tática
Um novo tipo de
medicamento é capaz de fazer as células inativas acordarem: e botarem
para fora o HIV que trazem escondido. O vírus é jogado na corrente
sanguínea.
5. A eliminação
Os antirretrovirais agem
sobre o HIV, permitindo que ele seja eliminado.Os reservatórios vão
sendo esvaziados, até não restar mais vírus.
Mais tarde, alguns
pesquisadores descobriram que o vorinostat também tinha outro efeito:
ele desperta as células T adormecidas. E isso é valiosíssimo no combate
ao HIV. Porque quando essas células acordam, elas começam a se
reproduzir e jogar vírus no sangue - onde ele fica vulnerável à ação dos
remédios antirretrovirais. O HIV é eliminado, as células T morrem e, se
esse processo for repetido por tempo suficiente, é possível eliminar
todas as células infectadas - e sacar o HIV do organismo.
David Margolis, da
Universidade da Carolina do Norte (EUA), foi o primeiro cientista a
testar esse procedimento. "Tive a ideia de acordar o HIV e empurrá-lo
para fora do corpo, permitindo a erradicação do vírus", diz. Depois de
obter resultados positivos em testes de laboratório, ele ficou três anos
pedindo permissão às autoridades de saúde americanas para fazer um
estudo em humanos. O vorinostat tem efeitos colaterais, como fadiga,
diarreia, hiperglicemia e anemia. Em casos raros, pode levar à formação
de coágulos no sangue, o que é perigoso. Mas o grande receio era quanto
ao vírus da Aids. Afinal, acordar células dormentes e estimulá-las a
produzir HIV envolve risco. E se o vírus surgisse com alguma mutação, e
os medicamentos antirretrovirais não fizessem efeito contra ele? Os
pacientes seriam inundados pelo HIV, e morreriam.
Mesmo assim, Margolis
obteve autorização para fazer o teste em oito portadores de HIV, que
receberam vorinostat. Os resultados foram publicados em 2012 - e
reanimaram o interesse da comunidade científica. Uma única dose de
vorinostat aumentou em mais de quatro vezes a quantidade de vírus no
sangue dos pacientes. Ou seja, a tese se comprovou. Funcionou. O remédio
conseguiu o que era considerado impossível: expulsar o HIV de seus
reservatórios (e fez isso sem provocar efeitos colaterais relevantes).
Mas foi um estudo de breve duração. Agora, Margolis está realizando uma
nova experiência, na qual os pacientes recebem mais doses de vorinostat,
durante mais tempo.
Pelo menos um estudo,
feito pela Universidade de Aarhus (Dinamarca) em parceria com a
Universidade do Colorado (EUA), comprovou o mesmo efeito em células
humanas testadas em laboratório. "Ainda temos um longo caminho, mas
acredito que a cura para o HIV seja alcançável", diz Ole Søgaard, líder
do estudo dinamarquês. Søgaard está finalizando um novo estudo, desta
vez dando o remédio diretamente a pacientes, e publicará os resultados
nos próximos meses. Pesquisadores da Universidade de Monash, na
Austrália, também estão testando o vorinostat e devem publicar
resultados em breve. A equipe pioneira, de David Margolis, continua
aperfeiçoando a técnica - em estudos que envolveram cientistas da
Universidade da Califórnia e uma pesquisadora da multinacional
farmacêutica Merck.
Ainda há dúvidas sobre o
procedimento. Qual a dose ideal do medicamento? Por quanto tempo? Ele é
o remédio ideal, ou surgirão outros? "É como o AZT, que foi a primeira
droga da sua classe (antirretroviral). Talvez a gente encontre drogas
melhores, ou resultados melhores combinando essa droga com outras", diz
Margolis.
Também há um dilema
ético envolvido. Como convencer um paciente que toma antirretrovirais, e
por isso está com o HIV sob controle, a participar de um estudo que
envolve risco de acordar uma doença letal? "Os métodos que temos hoje
são eficazes, relativamente seguros, bem tolerados e não tão caros",
afirma Daniel Kuritzkes, chefe do AIDS Clinical Trials Group (ACTG), um
dos maiores grupos de pesquisa na área.
Além disso, um paciente
curado pode ser facilmente reinfectado - basta fazer sexo sem proteção
com alguém que tenha HIV. O ideal mesmo seria criar uma vacina contra o
vírus. Infelizmente, o vírus conseguiu burlar todos os esforços nesse
sentido. Há várias razões que dificultam o desenvolvimento de uma
vacina. A primeira é a intensa variabilidade do vírus. Embora o HIV seja
dividido em somente dois tipos, 1 e 2 (que têm origem em primatas
diferentes), ele sofre constantes mutações dentro de cada tipo.
Estima-se que a capacidade de mutação do HIV seja mil vezes maior que a
do genoma humano. Isso torna o HIV imprevisível e complica bastante as
coisas. Como preparar o corpo para se defender se ninguém sabe
exatamente como o vírus pode se comportar? Mesmo assim, os esforços
seguem: em maio, um novo teste de vacina foi anunciado por pesquisadores
do Imperial College, de Londres, que farão um estudo em Ruanda e
Nigéria e divulgarão os resultados em 2015.
Mas, mesmo sem uma
vacina, e com a técnica de desinfecção ainda em testes iniciais, já
existem pessoas que chegaram lá - foram curadas do HIV.
Nós e eles
A longa história da Aids na Terra
1959
Surgem os primeiros
registros de homens morrendo devido a infecções de origem inexplicável.
Um deles, que morreu no Congo, teve tecidos do seu corpo preservados e
analisados nos anos 90. Eles continham HIV.
1981
O governo dos EUA
publica um relatório descrevendo os casos de cinco homens homossexuais
de Los Angeles, que tinham uma série de infecções raras. É o primeiro
registro oficial da doença. Duas das vítimas morreram antes mesmo da
publicação do artigo.
1983
Em abril, o Center for
Disease Control (CDC), dos EUA, estima que dezenas de milhares de
pessoas estejam infectadas pela doença. Ela ganha o nome de Aids
(síndrome de imunodeficiência adquirida, em inglês).
1984
O pesquisador Robert Gallo, do Instituto Nacional do Câncer dos EUA, afirma que a Aids é causada por um vírus.
1985
O ator americano Rock
Hudson morre de Aids. É a primeira grande celebridade a ser vitimada
pela doença, que já tem casos em todo o planeta.
1986
O Comitê Internacional
de Taxonomia de Vírus batiza o causador da Aids de Human
Immunodeficiency Virus (HIV), ou vírus da imunodeficiência humana.
1987
O governo americano aprova o uso da zidovudina (AZT), primeiro medicamento a combater o HIV.
1989
Magro e abatido, o
cantor Cazuza anuncia publicamente que está com Aids. Morreria em 1990
depois de uma agonia que expôs a fragilidade das vítimas.
1991
O laço vermelho se torna
o símbolo da luta contra a Aids. Magic Johnson, estrela do basquete dos
EUA, anuncia que é soropositivo. O cantor Freddie Mercury, do Queen,
morre vítima da doença.
1993
O filme Filadélfia, em
que Tom Hanks interpreta um advogado com HIV, chega aos cinemas. O
bailarino Rudolf Nureyev e o tenista Arthur Ashe morrem de Aids.
1994
A epidemia atinge 1 milhão de casos no mundo.
1995
Surge a terapia
antirretroviral altamente ativa (highly active antiretroviral therapy -
HAART), um coquetel de drogas que impede a progressão do HIV.
1997
O número de pessoas infectadas chega a 30 milhões no mundo.
2000
A busca por uma vacina se torna prioridade global na pesquisa contra o HIV.
2003
Cientistas comprovam que
o HIV veio dos chimpanzés. O laboratório VaxGen, um dos que desenvolve
vacinas, anuncia que os testes em humanos falharam.
2007
Médicos anunciam que um
paciente está livre do HIV. Timothy Brown, conhecido como Paciente de
Berlim, não registra a presença do vírus no corpo desde então.
2009 a 2013
São publicados os
primeiros estudos sobre eliminação de reservatórios do HIV, apontando um
caminho para a cura. A busca por vacinas continua.
OS PRIMEIROS CURADOS
Em 1995, o americano
Timothy Ray Brown descobriu que era soropositivo. Logo começou a tomar
os medicamentos antirretrovirais e estava indo bem, até que em 2007,
quando estava morando na Alemanha, ele começou a se sentir muito fraco. E
descobriu que estava com leucemia, um câncer que ataca as células T
(pois é, justo elas). Seu médico, o oncologista Gero Hütter, se lembrou
do seguinte: no norte da Europa, uma em cada cem pessoas é imune ao
vírus da Aids. Devido a uma mutação genética, elas não produzem uma
proteína chamada CCR5. E sem essa proteína, o vírus da Aids não consegue
entrar nas células.
Como Timothy estava com
leucemia, teria de receber um transplante de medula óssea. Nesse tipo de
transplante, o sistema imunológico do paciente é morto (por meio de
quimioterapia) e substituído pelas células do doador. O médico teve a
ideia de usar, como doadora, uma pessoa que fosse imune ao vírus da
Aids. Dessa forma, quem sabe, poderia acertar dois alvos com um só tiro:
curar Timothy da leucemia e do HIV.
O primeiro transplante
não teve o efeito esperado, e a leucemia voltou. Timothy aceitou se
submeter a um segundo. Funcionou. Ele ficou um ano no hospital, teve
várias complicações de saúde, mas se tornou o primeiro humano na
história a ser curado do HIV. Parou de tomar os antirretrovirais, e o
vírus nunca voltou. Timothy ficou conhecido como o "Paciente de Berlim".
Em julho deste ano, dois casos semelhantes ao dele foram apresentados
na conferência da International Aids Society. Mas, nesses casos, os
transplantes foram feitos há pouco tempo e ainda é cedo para dizer que o
HIV não retornou.
Seja como for,
transplante de medula é uma técnica complexa, que depende de fatores
muito específicos - o procedimento de Timothy tinha apenas 5% de chance
de sucesso. "Esse paciente ganhou na loteria", afirma Caio Rosenthal,
infectologista do hospital Emílio Ribas, de São Paulo. Além de pouco
eficaz, o procedimento é muito arriscado. "A pessoa que vai receber o
transplante de medula fica completamente sem defesas [imunológicas]
durante um período", explica Dirceu Greco, diretor do departamento de
DST e Aids do Ministério da Saúde.
Além das pessoas que não
produzem a proteína CCR5, há outro tipo de gente resistente ao HIV: os
chamados controladores de elite. Eles são infectados pelo vírus, mas não
desenvolvem Aids. "De todas as pessoas infectadas, 5% são chamados
progressores lentos. Eles têm carga viral baixa e só vão ficar doentes
muitos anos depois. E, dentro desses 5%, há também uma porcentagem de
controladores de elite, que apresentam carga viral há mais de dez anos e
conseguem viver sem remédios", explica Breno Riegel, infectologista do
Hospital Conceição, de Porto Alegre, e colaborador de estudos
internacionais - incluindo uma pesquisa com antirretrovirais que foi
considerada a mais importante do mundo em 2011 pelo jornal científico
Science.
Para ser um controlador
de elite, ou uma pessoa imune ao HIV, é preciso nascer com determinadas
mutações genéticas. Mas também existe gente que se torna controladora de
elite. Em março deste ano, pesquisadores do Instituto Pasteur, de
Paris, apresentaram um estudo demonstrando a cura funcional de 14
pacientes franceses portadores do HIV. A palavra funcional significa que
eles ainda carregam o vírus, mas não desenvolvem a Aids - mesmo tendo
parado de tomar medicamentos antirretrovirais. Esses pacientes são
identificados pela sigla Visconti, que vem de Viro-immunological
Sustained Control After Treatment Interruption (Controle
Viro-imunológico Sustentado Após a Interrupção do Tratamento). O líder
do estudo, Asier Sáez-Cirión, destaca uma característica importante
desses pacientes. Quando se descobriram infectados pelo HIV, na década
passada, eles logo passaram a tomar o coquetel antirretroviral.
Começaram a tomar os remédios no máximo 70 dias depois da contaminação. E
essa rapidez ajudou muito. "Tratando desde cedo, você limita a entrada
de vírus nos reservatórios (as células T inativas)", diz Sáez-Cirión. E
isso teoricamente permite que, depois de alguns anos tomando o remédio,
seja possível parar com ele - e mesmo assim não desenvolver Aids. Na
prática, as coisas costumam ser diferentes. "Quando a pessoa chega ao
médico, na maioria das vezes ela já está soropositiva há anos, e daí o
tratamento já não é mais tão eficiente", explica Rosenthal. Um paciente
que carrega o vírus há dez anos, por exemplo, já está com danos graves
ao sistema imunológico.
Os pacientes do grupo
Visconti tomaram os remédios durante três anos até que interromperam o
tratamento. Eles conseguiram se manter saudáveis mesmo sem os
antirretrovirais e estão assim há cerca de sete anos. Um deles está há
uma década sem a medicação. Sáez-Cirión se refere a essa cura como
"estado de remissão do vírus" - pois o HIV continua presente no corpo,
ainda que não provoque o desenvolvimento da Aids. "Quando vimos os
resultados, percebemos que isso pode ser um grande passo para a luta
contra o HIV. Ficamos muito emocionados. Queremos reforçar a mensagem de
que o tratamento precoce é importante", diz Sáez-Cirión.
O tratamento precoce foi
responsável por um caso ainda mais impressionante. Em março deste ano,
cientistas americanos revelaram que um bebê (que não teve o nome nem o
sexo divulgados) havia sido curado do HIV. Se uma grávida sabe que tem o
vírus da Aids e recebe tratamento adequado, com medicamentos
antiretrovirais, há 96% de chance de que o bebê nasça sem o vírus. Mas,
neste caso, não foi assim. A mãe da criança, que não havia recebido
atendimento pré-natal, chegou ao hospital já em trabalho de parto. Um
teste feito na hora detectou que ela tinha HIV. Era tarde demais para
tratar a mãe e impedir que transmitisse a doença para o filho.
Então os médicos fizeram
o parto e levaram o recém-nascido para a pediatra Hanna Gay, da
Universidade do Mississipi. Ela decidiu tratar o bebê com altas doses de
antiretrovirais, que foram mantidos durante os primeiros 18 meses da
vida da criança. A partir daí, a mãe sumiu e não veio mais pegar os
remédios. Ela ficou dez meses sem aparecer, e o bebê não recebeu nenhum
tratamento durante esse período. O que era um caso de relapso materno
acabou resultando numa descoberta científica incrível: mesmo sem nenhum
remédio, o HIV não retornou. Não havia mais vírus no sangue da criança.
Aparentemente, o tratamento ultraprecoce evitou que o HIV entrasse nos
reservatórios (mesma coisa que teria acontecido com os pacientes
franceses).
Humanos x HIV
Veja quem já está vencendo a doença - e como
Terapia atual
Como é? - O portador de
HIV recebe uma combinação de medicamentos (o chamado coquetel de
antiretrovirais) que impede a multiplicação do vírus. A quantidade de
HIV no sangue despenca, chegando a níveis muito baixos.
A pessoa desenvolve Aids? - Não.
Pode transmitir o vírus? - Sim. O HIV permanece escondido no organismo.
Terapia de próxima geração
Como é? - O portador de
HIV recebe um medicamento que acorda as células onde o vírus estava
escondido. Em seguida, toma o coquetel de antiretrovirais - que impedem a
multiplicação do HIV. Com o tempo, isso pode levar à eliminação total
do vírus do organismo.
Pode transmitir o vírus? - Em tese, não. Mas a técnica ainda está em fase experimental.
Geneticamente imune
Como é? - Existem pessoas que nascem com uma mutação na proteína CCR5 - e isso impede o HIV de entrar nas células.
Pode transmitir o vírus?
- Há controvérsias. Embora o HIV não consiga se multiplicar, é possível
que algumas cópias dele se instalem no organismo - o suficiente para
infectar alguém.
Supercontrolador
Como é? - É uma pessoa
cujo sistema imunológico consegue controlar o HIV, mesmo sem a ajuda de
remédios. Ainda não se sabe o que torna uma pessoa controladora de
elite. É o caso dos pacientes franceses do grupo Visconti.
Pode transmitir o vírus? - Sim.
Bebê de Mississipi
Como é? - O filho de uma
mulher HIV-positiva começou a receber o coquetel de antirretrovirais
logo após o nascimento. O vírus sumiu.
Pode transmitir o vírus? - Em tese, não. O bebê está aparentemente curado, com carga viral indetectável.
Paciente de Berlim
Como é? - Recebeu um
transplante de medula óssea de um paciente que tinha CCR5 mutante, ou
seja, era imune ao HIV. Com isso, ele também adquiriu imunidade ao
vírus.
Pode transmitir o vírus? - Em tese, não. O HIV desapareceu do organismo.
REENGENHARIA GENÉTICA
A expulsão do vírus, o
tratamento ultraprecoce, as vacinas e os transplantes não são as únicas
frentes de pesquisa contra o HIV. Existe mais uma, que consegue ser
ainda mais ousada: modificar geneticamente o corpo humano para torná-lo
resistente ao vírus. A técnica foi idealizada em 2008 e está sendo
desenvolvida pela Universidade do Sul da Califórnia em parceria com a
empresa de biotecnologia Sangamo BioSciences. Primeiro, obtém-se uma
amostra de células T do paciente (coletando um pouco de sangue). Em
seguida, usando técnicas de manipulação genética, essas células são
alteradas. Elas passam a produzir uma versão deficiente da proteína CCR5
- aquela proteína essencial para o vírus da Aids. As células
geneticamente modificadas são reinjetadas na pessoa, se multiplicam e
aos poucos vão substituindo as células T normais. E o paciente adquire
imunidade ao HIV. Essa é a ideia.
A técnica já foi testada
em algumas pessoas. A mais famosa delas é um homem, identificado apenas
como "Paciente de Trenton" (o nome vem da cidade onde mora, em Nova
Jersey). Ele recebeu as células modificadas e parou de tomar os
medicamentos anti-HIV. Num primeiro momento, a quantidade de vírus em
seu sangue disparou. Mas em seguida despencou, até zerar. O HIV sumiu.
"Eu me senti um super-homem", disse o paciente ao jornal New York Times.
O resultado é animador, mas ainda não pode ser considerado cura. O
estudo durou pouquíssimo tempo, apenas três meses (depois disso, o homem
voltou a tomar os antirretrovirais, de forma preventiva). Seria preciso
esperar mais para assegurar que o vírus não iria voltar. Além disso, o
Paciente de Trenton possuía uma mutação genética que debilitava um pouco
a proteína CCR5. Ele não era imune ao HIV, mas essa mutação pode ter
aumentado a eficácia do tratamento - que não funcionou tão bem com os
outros pacientes. Há um novo teste em curso, com nove soropositivos, e
os resultados serão publicados até o final do ano.
Há um detalhe
especialmente intrigante. No Paciente de Trenton, apenas 13,5% das
células T adquiriram resistência ao vírus durante o estudo. Todas as
demais continuaram vulneráveis. Mas essa mudança, modesta, já foi
suficiente para que o organismo virasse o jogo contra o HIV e o
eliminasse completamente do sangue. Talvez seja possível estender os
limites do corpo humano - e, com uma pequena ajuda, torná-lo capaz de
vencer a Aids. Talvez as drogas que expulsam o vírus de seus
reservatórios funcionem cada vez melhor, e se tornem lugar-comum daqui a
alguns anos. Talvez os tratamentos ultraprecoces livrem milhões de
pessoas do vírus. Mas notícias promissoras não significam que devamos
baixar a guarda. Pelo contrário. A prevenção e o sexo seguro (com
camisinha) continuam sendo essenciais. Para de fato vencer a Aids, a
humanidade terá de apelar para as armas mais poderosas que existem: a
inteligência e o bom senso. Afinal, se o vírus pode evoluir, nós também.
O primeiro curado
O americano Timothy Ray
Brown, 47, recebeu um transplante experimental de medula óssea - e, por
conta disso, seu corpo se livrou do vírus HIV. Aqui, ele conta como foi o
processo, e como vive hoje em dia.
O transplante, que você recebeu em 2009, era um procedimento arriscado, que poderia levar à morte. Por que você aceitou?
Quando os médicos
começaram a tentar me convencer, eu disse não, porque o vírus HIV estava
em remissão (sob controle). Mas eu tive leucemia, e tive de fazer o
transplante por causa dela. Não fiz por causa da Aids; fiz por causa da
leucemia.
E como você se sentiu quando descobriu que estava curado do HIV?
Eu não acreditei muito,
até que o Dr. (Gero) Hütter publicou o caso no New England Journal of
Medicine (em 2009). Aí eu pensei: ok, se outras pessoas acreditam que
aconteceu, então eu vou acreditar. Se cientistas estavam acreditando,
então era verdade. Me senti aliviado. Isso mudou a minha vida.
Você se sente curado?
Eu definitivamente me
sinto curado. Meu corpo foi analisado da cabeça aos pés, fiz inúmeros
exames de sangue, e não há sinal do HIV no meu corpo.
Como é a sua rotina médica?
Quando eu estava morando
em São Francisco, ia ao médico pelo menos uma vez por mês. Mas, desde
que me mudei para Las Vegas (onde administra uma fundação de luta contra
a Aids), só vou ao médico se tiver necessidade. Mas eu continuo
participando de estudos que possam ajudar mais pessoas a serem curadas.
O placar do jogo
Números da epidemia que mudou o mundo
- 26% da população na Suazilândia tem o vírus. É o país com maior incidência de contaminação.
- Em Bangladesh, menos de 0,1% da população está infectada. É a menor proporção.
- Mais de metade dos
infectados são mulheres, mas o problema é muito pior no sul da África,
onde mulheres representam 58% dos infectados.
- Até 2015, o orçamento estimado para combater a Aids no mundo inteiro é de US$ 24 bilhões anuais.
- Somente nos EUA, foram gastos US$ 344 bilhões no combate à Aids desde 1981.
- 30 milhões de pessoas já morreram de Aids
- Cerca de 15 milhões de pessoas têm acesso a tratamento com antirretrovirais.
- Nas Maldivas, menos de 100 pessoas possuem o vírus. É o país de menor incidência.
- Na África do Sul, 5,6 milhões de pessoas estão infectadas. É o líder mundial.
- 34 milhões estão infectadas no mundo.