A decisão deixa o vírus mais ativo no corpo, aumentando o risco do surgimento de doenças oportunistas, e os torna mais propensos a infectar outras pessoas
O início precoce do tratamento contra o HIV promoveu, há pouco mais de
um ano, a primeira cura funcional da infecção em um bebê norte-americano
exposto ao vírus durante o parto da mãe soropositiva. O método também
se mostra bastante eficiente em experimentos em andamento na Europa com
adultos e jovens que contraíram o vírus. Por esses e mais uma série de
trabalhos científicos de comprovação que países, incluindo o Brasil,
mudaram as diretrizes e promovem o acesso universal ao tratamento com
antirretrovirais a qualquer cidadão diagnosticado como soropositivo,
independentemente da carga viral dele. Mas, na contramão de todas as
evidências, adolescentes e jovens adultos são o segmento da população
que menos aderem ao tratamento e destacam-se por postergarem ao máximo o
início da medicação, mesmo cientes de que estão contaminados.
Pesquisa
publicada no início deste mês na revista científica Jama Pediatrics
afirma que quase metade dos adolescentes e jovens adultos
norte-americanos infectados pelo HIV atrasam o início do tratamento até
que a doença tenha avançado. “Essas descobertas são decididamente
decepcionantes e reforçam a necessidade de desenvolver melhores formas
de diagnosticar adolescentes mais cedo e, tão importante quanto, de
tê-los sob terapia mais cedo”, preocupa-se o investigador principal,
Allison Agwu, especialista em doenças infecciosas e HIV no Centro
Infantil do Hospital Johns Hopkins (EUA). Agwu e a equipe liderada por
ele analisaram os registros de cerca de 1.500 jovens, com idade entre 12
e 24 anos, infectados com o HIV e atendidos entre 2002 e 2010 em 13
clínicas do país.
Os pesquisadores consideram as descobertas
particularmente preocupantes frente às evidências de que o início do
tratamento o mais cedo possível pode ser um caminho, mesmo que longo, de
manter o vírus sob controle. “É importante para evitar danos
cardiovasculares, renais e neurológicos característicos da infecção pelo
HIV mal controlada ao longo do tempo”, reforça Agwu.
Entre 30% e
45% dos jovens pesquisados procuraram tratamento quando a doença havia
atingido estágio avançado, definido como a contagem de células CD4 — de
defesa do corpo — abaixo de 350 por milímetro cúbico de sangue. As
células CD4 são alvo favorito de HIV e sentinelas mais bem treinadas do
sistema imunológico contra a infecção. O esgotamento ou a destruição
delas torna os indivíduos mais vulneráveis a uma ampla gama de
organismos bacterianos, virais e fúngicas. Esses fatores não causam
doenças em pessoas saudáveis, mas podem levar a infecções graves com
risco de vida em pessoas que têm o sistema imunológico comprometido,
como as soropositivas.
Uma descoberta que preocupa ainda mais os médicos é que pacientes com
contagens de células CD4 mais baixas tendem a ter o vírus mais ativo
circulante no sangue e nos fluidos corporais, o que os torna mais
propensos a espalhar a infecção para outras pessoas. “Os médicos
precisam ficar longe das noções preconcebidas sobre quem é infectado,
esquecer os perfis de pacientes de risco e testar todos”, defende Agwu.
Ele acredita que os pediatras devem ajudar os adolescentes a ver o teste
para HIV como parte da rotina médica, como medir o peso e o açúcar no
sangue.
“Queria ser normal”
A explicação para
o fenômeno que surpreende pesquisadores e se repete em outros países
não é certeira. A combinação de substâncias fortes que devem ser
ministradas diariamente e, em muitos casos, mais de uma vez causa, no
mínimo, incômodo aos indivíduos em qualquer idade. Os efeitos colaterais
imediatos à ingestão variam entre enjoo, vômito, dor de cabeça,
inflamação estomacal, forte gosto amargo na boca e desânimo. O impacto
não é somente físico. A exposição que sofre o paciente que engole
cápsulas grandes duas vezes ao dia gera perguntas e, como consequência, o
preconceito e o isolamento. A angustiante rotina é agravada pelos
questionamentos e desejos comuns da adolescência.
“No começo, eu
não quis aceitar. Queria ser normal, igual a todo mundo e decidi que não
tomaria (os medicamentos). Eu não aceitava a doença que eu tinha. Muita
gente conversou comigo e eu voltei para o meu bem”, relata Giovana*, 17
anos. O HIV foi transmitido a ela de maneira vertical, pela mãe
soropositiva durante a gestação ou o parto. “De vez em quando, paro de
tomar porque eu ainda não aceito. Eu olho para as minhas amigas, as vejo
fazendo tudo e eu aqui. Não dou conta de aceitar.” As falhas no
tratamento começaram por volta dos 13 anos, quando Giovana compreendeu a
dimensão e o significado de carregar consigo o traiçoeiro inimigo.
Mesmo tendo tomado o coquetel corretamente até então, o contra-ataque
arquitetado pelo vírus foi avassalador.
Hoje, Giovana tem
dificuldade na fala e precisa do auxílio de um andador para se
locomover. O corpo magro está repleto de manchas que surgiram como
consequência do ataque viral. “Quando eu paro (de tomar os
antirretrovirais), me sinto muito mal e não dou conta de fazer nada.
Fico desarrumada e decido que está na hora de tomar de novo. Tomo, fico
quietinha uns dois dias e melhoro”, relata. A jovem, neste ano, não
frequentará o ensino médio por temer a reação dos outros jovens. “Estava
estudando, mas acho que as pessoas tinham muito preconceito comigo
porque me deixavam de lado. Ninguém queria brincar comigo, me sentia
muito só. Acho que, por isso, fiquei muito depressiva.”
Ela
também atribui a baixa emocional à morte do pai, que faleceu há pouco
mais de um ano em decorrência dos agravamentos da Aids. A mãe, Sílvia*,
38 anos, foi infectada aos 18, mas só fez o exame que confirmou a
sorologia no dia em que Giovana nasceu. O primeiro filho do casal não
tem o vírus. “Eu era muito jovem e, mesmo sabendo que ele era
soropositivo, não procurei fazer o exame.” Ela acredita que a tendência
da maioria dos soropositivos é esconder a condição. “A pessoa acaba
entrando em depressão porque se vê sozinha. Quando esconde, exclui os
amigos, a família. Ela se vê diferente de todos, como se fosse um
extraterrestre.”
Sob controle
Não se trata
exatamente da erradicação da doença porque o vírus permanece no sangue
do paciente, mesmo que em quantidades mínimas e quase indetectáveis.
Porém, o próprio sistema imunológico é capaz de controlar sozinho a
multiplicação do vírus, impedindo que qualquer sintoma se manifeste.
* Nomes fictícios em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
Medo de serem identificados
O segredo faz parte da vida da grande maioria dos soropositivos. A exposição indesejada e o preconceito são duas grandes barreiras para que a pessoa infectada possa discutir a condição dela abertamente com familiares, amigos, no ambiente de trabalho ou mesmo com o(a) companheiro(a). A consequência desse temor também pode ser motivo de interrupção da terapia. Segundo a pesquisadora do Grupo de Estudos em Educação e Relação de Gênero, da Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Jeane Félix, uma das grandes preocupações do jovem soropositivo é adquirir a aparência física clássica do portador, com rosto e corpo muito magro, ou mesmo feições que o vincule à doença, como a lipodistrofia. “É um medo geral porque não querem ser identificados.”
Félix dedicou um dos capítulos da tese de pós-doutorado ao significado para o adolescente de tomar antirretrovirais, os efeitos do medicamento na vida deles e as estratégias utilizadas para tomar a medicação quando a família não sabe do diagnóstico. Alguns trocavam o frasco do remédio e o substituíam por potes de vitaminas para a prática de exercícios físicos, por exemplo. “Em relação às mudanças no corpo, ouvi bastante o medo de sofrer preconceito, discriminação em virtude da soropositividade ou de ser abandonado pela família ou pelo companheiro.”
Outra característica reparada pela pesquisadora foi a forma efêmera com que os jovens lidam com o tempo. Era mais presente neles a vontade de viver o agora e de não pensar em sintomas que poderiam surgir em 10, cinco anos ou mesmo nunca. “Ouvi de muitos jovens: ‘enquanto não aparecer nenhum sintoma, nenhuma dor, infecção oportunista, nada que me obrigue a tomar o medicamento, eu não vou tomar mesmo’”, relata.
Os pacientes de transmissão vertical tendem a apresentar outro tipo de característica. Jeane Félix conta a história de um soropositivo com cerca de 20 anos que decidiu parar o tratamento usando a justificativa de que tinha passado a vida inteira tomando o coquetel e que queria saber como viveria sem essa obrigação diária. “O caso interessante de um menino totalmente informado que burla aquela história de que as pessoas têm falta de informação e, por isso, não tomam a medicação”, classifica. Poucos meses depois, ele precisou voltar à terapia devido ao agravamento dos sintomas. (BS)
Consequência estéticaÉ uma anormal distribuição de gordura corporal. Pode ocorrer aumento de gordura na região do abdômen/ventre, entre os ombros, em volta do pescoço ou no tórax (especialmente em mulheres) ou perda de gordura da pele, mais aparente nos braços, nas pernas, nas nádegas e no rosto, resultando em enfraquecimento da face, atrofiamento das nádegas e em veias aparentes nas pernas e nos braços.
http://sites.uai.com.br/app/noticia/saudeplena/noticias/2014/02/13/noticia_saudeplena,147495/e-alto-o-numero-de-jovens-com-hiv-que-nao-aderem-ao-tratamento.shtml