Até hoje, apenas um ensaio em humanos de vacina contra o HIV, nomeado
RV144, foi capaz de demonstrar algum grau de eficácia. Também conhecido
como o ensaio tailandês, esse experimento combinou dois imunizantes que
falharam por conta própria. A vacinação na Tailândia se deu ao longo
de 24 semanas, em 2003. Em seguida, foram testados os níveis de
infecção para o HIV até julho de 2006. O relatório inicial mostra que a
taxa de infecção pelo vírus entre os voluntários que receberam a
vacina experimental foi 31% menor do que a taxa em voluntários que
receberam o placebo. O dado animou médicos e infectologistas do mundo
todo, que começaram a buscar explicações para o fenômeno. Agora, dois
grupos de pesquisadores norte-americanos relatam ter chegado a uma
resposta inédita que pode ajudar no desenvolvimento de uma imunização
eficaz e de longa duração contra o patógeno causador da Aids.
A
chave, detalhada em dois estudos divulgados na revista Science, está na
comparação dos resultados alcançados na Tailândia com um ensaio
clínico anterior, chamado VAX003, que falhou em mostrar qualquer
eficácia, apesar dos níveis mais elevados do que o RV144 de outros
tipos de anticorpos específicos para o HIV. A equipe da pesquisadora
Nicole Yates, do Instituto de Duke de Vacinas Humanas, descobriu que,
entre o mix de respostas de anticorpos, apenas um se destacou. Os
indivíduos que receberam a vacina tailandesa protetora eram mais
propensos a ter os anticorpos IgG3 específicos para o HIV em comparação
aos indivíduos dos testes da vacina que falhou completamente. O IgG3 é
uma imunoglobina conhecida por proteger contra a malária e outras
doenças infecciosas.
As duas estratégias a que os pesquisadores
tiveram acesso — a RV144 e a VAX003— estavam voltadas à mesma região do
vírus conhecida como proteína do envelope do HIV. Trata-se da membrana
que envolve o patógeno. Eles se perguntaram a razão da existência de
diferença na resposta imunitária das vacinas. Como era possível
detectar quais foram os anticorpos produzidos por ambas as tentativas, a
primeira hipótese analisada foi a dosagem dos subtipos de imunoglobina
G (IgG). Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia, Edecio
Cunha Neto explica que esse é o principal anticorpo do sangue humano, e
os subtipos dele se especializam em determinadas funções de proteção.
O
IgG3, por exemplo, facilita a fagocitose e a livre destruição por
complemento — dois processos sabidamente importantes para a destruição
do HIV. Na fagocitose, a célula “engole” outro micro-organismo ou uma
célula menor. Quando o IgG3 potencializa esse processo, faz com que as
estruturas infectadas sejam engolidas e, portanto, neutralizadas. A
importância de todo esse processo do sistema de defesa não é uma
novidade na medicina. O fator que chama a atenção é como ele parece ser
imprescindível para a proteção contra o HIV. “Até agora, ninguém sabia
por que a vacina RV144 foi melhor que a VAX003. Existem diversas
possibilidades e eles foram testando hipóteses.”
Para Cunha
Neto, um dos líderes do estudo que desenvolve a vacina brasileira
contra o HIV, ambos os estudos publicados hoje fazem pergunta
científica semelhante e dosam a mesma substância no soro de pessoas que
foram vacinadas com os dois imunizantes. A diferença entre os
trabalhos está em pequenas variações na forma como avaliam a função do
IgG3 e como ele está relacionado com uma resposta mais protetora — a
partir de testes in vitro.
Segundo o infectologista Esper
Kallas, depois da divulgação dos resultados do RV144 e do VAX003,
vários pesquisadores fizeram buscas nos chamados “marcadores de
proteção”, identificando alguns deles. Acredita-se que os anticorpos
induzidos parecem ter sido capazes de conferir alguma proteção, uma vez
que ambos os estudos apontam que anticorpos dirigidos contra uma parte
do envelope do vírus estão associados com proteção. “Agora, fica a
pergunta de quais são as repercussões de tais achados. Será que podemos
aprimorar uma vacina que, mais especificamente, induza resposta contra
essa porção específica do vírus? Se conseguirmos, tal vacina será
eficaz?” Kallas acrescenta que os trabalhos são resultado do esforço
para entender o porquê do sucesso marginal da vacina que foi testada na
Tailândia. “Será importante acompanhar a evolução desses achados,
especialmente nos futuros estudos que devem começar em breve.”
http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/ciencia-e-saude/2014/03/21/internas_cienciaesaude,495320/cientistas-identificam-proteina-que-leva-os-anticorpos-a-neutralizarem-o-hiv.shtml